quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Galland e os Contos Árabes

Alguém já teve uma boa tia que cuidando da gente, nós naquela época com sete ou oito anos (deveria ser o ano de 1967 ou 1968), contasse histórias fantásticas, de aventuras mirabolantes, de aves gigantes, príncipes, sultões, reinos, ciclopes ou gênios enquanto nossos pais iam para a noite? Muita criança deve ter tido essa sorte e nós, eu e meu mano, também tivemos.

A tia Lea nos contagiou com o “extraordinário” e jamais esqueceremos aquelas noites felizes. Ela simplesmente nos contou todas as “As mil e uma noites”: quatro volumes traduzidos pelo francês Galland do árabe. “As nove viagens e aventuras do marinheiro Simbad”, “Ali Babá e os quarenta ladrões”, “Aladim e a lâmpada maravilhosa” é só um pouquinho do vasto conteúdo da obra que contagiou a minha imaginação infantil.

A obra, na verdade, parece ser mais antiga, narrativas que os árabes herdaram dos antigos persas, de cultura diferente, e que sincretizaram. Nas aventuras desses contos árabes é comum o califa Harun-Al-Rashid, grande comendador dos crentes (Bagdad, ano 840 d.C.) se disfarçar, junto com seu grão-vizir, de gente comum e sair pela cidade para descobrir as quantas andava sua popularidade. Isso não é propaganda para vender livro! Por favor! É só uma nostalgia que me acomete...

Entendo agora o porquê de eu gostar tanto da obra "Cem anos de Solidão": García Marquez usa muito dessa magia de tapetes voadores, ciganos, adivinhos, etc. Adoro mesmo essa tia Lea, até desconfio que ela fosse Sheerazade, a princesa que contava histórias toda noite, nunca as terminava, porque senão morreria... (este blogueiro saudoso).

"Não há necessidade de preveni-los sobre o mérito e a beleza dos contos incluídos nesta obra. Eles próprios se recomendam: basta lê-los para se concordar que, em tal gênero, jamais se viu coisa tão linda até agora noutra língua. Com efeito, haverá algo mais engenhoso do que se ter feito um todo de uma prodigiosa quantidade de contos, cuja variedade é tão surpreendente e cuja concate nação é tão admirável que parece haver sido escritos para compor a ampla coletânea donde estes foram extraídos? Digo ampla coletânea, pois o original árabe, intitulado “As Mil e Uma Noites”, possui trinta e seis partes; e não é senão a tradução da primeira que hoje damos a lume. Ignora-se o nome do autor de tão grande obra, mas provavelmente ela não pertence a um único homem, porque, como se pode crer que um único homem tenha tido imaginação suficiente para tanta ficção? Se os contos dessa espécie são agradáveis e divertidos pelo maravilhoso que neles reina, estes devem superar quantos hajam aparecido, por estarem repletos de fatos que surpreendem e seduzem o espírito, e fazerem ver como ultrapassam os árabes as demais nações em tal gênero de composição” (Prefácio de Galland sobre a sua tradução de ‘Contos árabes’).

Antoine Galland nasceu em 1646 de pais pobres, fixados numa aldeiazinha da Picardia. Tinha apenas quatro anos, e era o sétimo filho, quando seu pai faleceu. Sua mãe, não sabendo que destino dar-lhe, e reduzida ela própria a viver do trabalho, tanto fez que conseguisse colocá-lo no colégio de Noyon, onde o principal e um cônego da catedral dividiram os cuidados e o custo da sua educação. Ali ficou até os treze anos, quando perdeu ao mesmo tempo os dois protetores, o que o obrigou a voltar para sua mãe com um pouco de latim, grego e até hebraico. Sua mãe decidiu, então, que ele devia aprender um oficio. Antoine obedeceu e, apesar da sua aversão, permaneceu um ano com um mestre.

Certo dia, porém, abandonou o serviço e tomou o caminho de Paris, sem outros recursos que o endereço de uma velha parente e o de um bom eclesiástico que vira, às vezes, em casa do cônego de Noyon. A tentativa logrou êxito que ultrapassou as suas esperanças. No colégio du Plessis, continuou os seus estudos; em seguida, com Petitpied, doutor da Sorbona, aprofundou- se no conhecimento do hebraico e outras línguas orientais, e preparou um catálogo dos manuscritos orientais da biblioteca de Sorbone. Transferiu-se, depois, para o colégio Mazarino; um professor, Godoum, reunindo certo número de meninos de três ou quatro anos de idade somente, entre os quais o duque de la Meiileraye, pro pusera-se ensinar-lhes latim fácil e rapidamente, colocando-os ao lado de pessoas que não falassem outra língua. Galland, associado a tal trabalho, não teve tempo de ver o resultado.

Nointel, nomeado para a embaixada de Constantinopla levou-o consigo, para obter certas provas sobre artigos de fé que constituíam motivo de disputa entre Arnaud e o ministro Claude. Galland, chegado a Constantinopla, adquiriu em pouco tempo o uso do grego vulgar, e acompanhou Nointel a Jerusalém e demais lugares da Terra Santa, onde se pôs a pesquisar, anunciando ao embaixador as curiosidades descobertas; copiou inscrições, desenhou da melhor maneira possível outros monumentos, removendo-os também às vezes, e é a ele que devemos, entre outros, os singulares mármores hoje no gabinete de Baudelot. Galland não julgou oportuno acompanhar a Constantinopla Nointel, preferindo voltar para Paris, onde chegou em 1675. Ali travou conhecimento com Vaillant, Carcavy e Giraud.

Estes o enviaram de novo ao Oriente, donde ele trouxe, no ano seguinte, numerosos medalhões. Em 1679, Galland empreendeu terceira viagem, por conta da companhia das Índias Orientais. As mudanças sobrevindas na companhia interromperam os estudos, dezoito meses depois: mas Colbert, informado, empregou-o por conta própria; após a sua morte, o marquês de Louvois fez com que Galland continuasse ainda por algum tempo as suas pesquisas, com o título de antiquário do rei. Durante a sua longa permanência, Galland aprendeu a fundo o árabe, o turco e o persa.

Em Esmirna, quase morreu num espantoso tremor de terra. Na sua volta a Paris, auxiliou Thévenot, guarda do biblioteca do rei, até que este faleceu. Empregou-o em seguida Herbelot. Mas este também morreu em breve, deixando incompleto o seu trabalho. Continuou-o Galland, tal qual o temos, e escreveu o prefácio da obra, que passou a chamar-se Biblioteca Oriental. Participou da edição do Menagiana, aparecida então. Julga-se até que foi êle que forneceu o material do primeiro volume. Pouco antes, dera a lume uma Relação da morte do sultão Osmã, e da coroação do sultão Mustafá, traduzida do turco, e uma Coletânea de máximas e ditos, tirados das obras dos orientais.

Após a morte de Herbelot, apegou-se Galland a Bignon, primeiro presidente do grande conselho, que, por gosto hereditário, queria ter sempre ao seu lado um homem de letras. Bignon morreu no ano seguinte. Parecia ser destino de Galland perder sempre tão úteis proteções. Mas a proteção do digno magistrado ultrapassou os limites comuns, tanto que lhe deixou uma pensão. Além disso, Foucault, conselheiro de Estado, intendente naquela ocasião na Baixa Normandia, chamou-o ao seu lado.

No suave lazer de tão tranqüila posição, no meio de uma ampla biblioteca, Galland compôs várias obras menores. Foi aí que começou a imensa tradução dos Contos Árabes, tão conhecidos pelo nome de Mil e Uma Noites. Galland foi admitido pelo rei à academia das Inscrições. E imediatamente empreendeu para ela um Dicionário numismático, contendo a explicação dos nomes das dignidades, dos títulos de honra, e em geral de todos os termos singulares encontráveis nas medalhas antigas, gregas e romanas. Regressou, finalmente, para Paris em 1706.

Em 1709 foi nomeado professor de língua árabe no colégio real. Há outras obras escritas por Galland: Uma Relação das suas viagens, uma descrição particular da cidade de Constantinopla, adendas à Biblioteca Oriental de Herbelot, um catálogo dos historiadores turcos, árabes e persas, uma história geral dos imperadores turcos, uma tradução do Corão, com notas histórico-críticas, uma continuação da tradução das Mil e uma Noites.

Galland trabalhava sem cessar, fossem quais fossem as suas condições, pouca atenção dando às necessidades, e nenhuma ao conforto. Só tinha em mente a exatidão. Simples nos hábitos e nas maneiras como nas obras, teria ensinado por toda a vida a crianças os primeiros elementos de gramática com o mesmo prazer com o qual demonstrava a sua erudição em diferentes matérias.

Morreu em 17 de fevereiro de 1715, aos 69 anos.O amor das letras foi a última coisa que nele se extinguiu. Pouco antes da morte, julgou que as suas obras, o único bem por ele deixado, poderiam perder-se, pelo que deixou disposições, fielmente executadas, a fim de que os manuscritos orientais passassem para a biblioteca do rei, o Dicionário numismático para a Academia, e a sua tradução do Corão para o padre Bignon, como penhor da sua estima e do seu reconhecimento.

As Mil e uma Noites

Longe da finalidade moralizadora ou didática que caracteriza a literatura oriental, As mil e uma noites devem seu êxito e atualidade ao entretenimento que proporcionam: a magia, a aventura, o sobrenatural e o fantástico, a intervenção de gênios, gigantes e duendes fazem de muitos de seus contos clássicos da literatura universal.

As mil e uma noites (Alf layla u layl) são uma coletânea de contos orientais, de procedência diversa e autoria desconhecida. Sua trama central é bem conhecida. Desiludido das mulheres porque sua esposa o traíra, o rei Xariar ordena ao vizir que todas as noites lhe traga uma donzela.

Após possuí-la, manda matá-la na manhã seguinte. Por fim, cabe a vez a Xerazade, formosa filha do vizir. Esta, porém, concebe um estratagema. Noite após noite conta ao rei uma história, mas, interrompendo-a habilmente ao clarear o dia e retomando-a ao cair da noite, consegue manter sempre vivo o interesse do monarca, até ele resolver poupar sua vida.

Esse fio condutor é de origem indiana e chegou aos árabes pelos persas. Os contos que a ele se ligam, contêm elementos sobretudo árabes, persas e indostânicos. Supõe-se que tenham aparecido pela primeira vez, em língua árabe, no século VII, talvez adaptados de uma coletânea persa chamada Hazar afsaneh (Mil narrativas), conhecida por referências em obras de autores árabes do século X. Outros contos foram incorporando-se ao longo dos séculos ao relato central, até a versão definitiva da obra se completar no início do século XVI.

As histórias variam em sensibilidade e tipo. Em geral são de fadas, feiticeiros e "djins" (gênios), de amor cortesão, de viagens ou aventuras, de animais (fábulas), de fundo didático-moral, histórico, religioso, humorístico e erótico. Entre as mais conhecidas estão Aladim e a lâmpada maravilhosa, As aventuras de Simbá o marujo, Ali-Babá e os quarenta ladrões, A história do pescador e do gênio, O cavalo mágico e A história dos sete vizires.

A obra existe em diferentes versões, conforme foi decalcada, alternativamente, em cada uma das três tradições dos manuscritos (duas egípcias e uma asiática). Compiladores e tradutores orientais e ocidentais adaptaram-na ou acrescentaram-lhe trechos e novos contos. Talvez no século XVIII tenha sido revista com base numa das versões egípcias e em 1853 impressa na forma árabe definitiva.

Entre 1704 e 1712 apareceram na Europa os 12 volumes da tradução francesa de Antoine Galland, Les Mille et une nuits, contes arabes traduits en français (As mil e uma noites, contos árabes traduzidos para o francês), que ficou também conhecida como Os contos das mil e uma noites para crianças. Foi a primeira versão européia publicada, realizada a partir de dois manuscritos incompletos e das histórias fornecidas por um sírio. Serviu de base a numerosas traduções e ao acréscimo de fontes manuscritas ou orais que se realizaram durante a primeira metade do século XIX e que foram recompiladas por Maximilian Habicht na variante conhecida como edição Breslau (1825-1843).

Uma edição publicada em 1835, no Cairo, constituiu outra fonte importante para as traduções posteriores, a mais famosa das quais foi a inglesa The Thousand Nights and a Night (1885-1888), de Sir Richard Burton.

Outras traduções foram a alemã de Enno Littmann, a inglesa de John Payne e a francesa de Joseph Charles Mardruss. Em português, há uma edição em seis volumes prefaciada por Aquilino Ribeiro e traduzida por vários escritores, publicada em 1958.

O aparecimento de As mil e uma noites foi ponto de partida de uma onda de interesse pelas coisas orientais no século XVIII e começo do século XIX. A obra foi imitada na forma e nos motivos: Robert L. Stevenson escreveu as New Arabian Nights (1882; Novas noites árabes) e More New Arabian Nights (Mais novas noites árabes).

As mil e uma noites também inspirou a visão transfigurada do Oriente de Les Orientales (1829; As orientais), de Victor Hugo, e de Die Abbassiden (1834; Os abássidas) de August von Platen, e influenciou de diversas maneiras os escritores, como Voltaire em Zadig. É sabido também que a suntuosidade oriental das versões européias de As mil e uma noites influiu, provavelmente, em poemas de Coleridge e outros.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Daniel Defoe

O profundo conhecimento da sociedade em que viveu e o talento para analisar os mínimos detalhes da existência cotidiana fizeram de Defoe um precursor do romance realista inglês.

Daniel Defoe nasceu em Londres em 1660. Membro de uma família dissidente da Igreja Anglicana, recebeu esmerada educação literária. Pretendia seguir a carreira eclesiástica, mas acabou se estabelecendo como comerciante por volta de 1683.

Atraído pela política, começou a escrever numerosos panfletos, um dos quais motivou seu encarceramento e a condenação ao pelourinho. Enquanto aguardava o cumprimento da pena, Defoe redigiu o célebre Hymn to the Pillory (1703; Hino ao pelourinho), que transformou a sentença num retumbante triunfo para ele. Contudo, ficou quase um ano preso em Newgate.

Uma vez livre, Defoe, cujos negócios estavam falidos, fundou em 1704 o periódico Review, de tendência conservadora, em que tratava de uma grande variedade de temas, e por isso foi considerado um precursor do jornalismo moderno. Decidindo-se pela literatura, publicou em 1719 Robinson Crusoe, romance que o tornou célebre.

Vazado em estilo realista e simples, inspirava-se na história verídica de Alexander Selkirk, marinheiro abandonado durante anos numa ilha deserta. A obra fez grande sucesso, embora, a princípio, fosse considerada apenas um relato de aventuras e só depois tenha assumido o caráter de símbolo do homem que enfrenta a natureza valendo-se apenas de suas forças e de sua razão.

Moll Flanders (1722) trazia o mesmo substrato moralista da obra anterior, mas graças à vivacidade da narrativa e à descrição realista da vida nas camadas inferiores da sociedade, constituiu um passo decisivo na história do romance social.

Em seus últimos anos de vida, o escritor manteve intensa atividade, mas tanto A Journal of the Plague Year (1722; Diário do ano da peste), minuciosa descrição dos horrores provocados em 1665 pela peste em Londres, quanto o romance Roxana (1724) são marcados por certa monotonia estilística.

Daniel Defoe morreu em Londres em 24 de abril de 1731.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Petrônio

Personagem de destaque na corte de Nero, o escritor romano Petrônio deixou um retrato sarcástico da sociedade romana do século I da era cristã na obra Satíricon, que mantém atualidade como crítica social e fonte documental.


Acredita-se que o autor do Satíricon tenha sido o mesmo Caio Petrônio o Árbitro que viveu em Roma e a quem se referiu o historiador romano Tácito em seus Anais (XVI, 18-19).

De família aristocrática, foi descrito como pessoa requintada, que amava os prazeres da mesa e da vida em geral, o que não o impediu de exercer com eficiência e retidão os cargos de governador da Bitínia, atual Turquia, e depois o de cônsul. Conselheiro de Nero, no ano 63, aproximadamente, foi por ele nomeado arbiter elegantiae (árbitro da elegância).

O romance de Petrônio, do qual só se conservam partes, é destituído de intenções moralistas e reproduz o ambiente romano de devassidão nos bordéis e nas estações de água, com seus parasitos, prostitutas, novos-ricos e literatos.

Narrado por um libertino que viaja com dois companheiros pelo sul da Itália, os capítulos mais famosos são a "Matrona de Éfeso" -- fonte de anedotas sobre as mulheres e de várias novelas e comédias -- e "O festim de Trimalcião" -- em que o dono da casa, ansioso por mostrar-se culto, cai no ridículo ao desfiar uma série de citações equivocadas.

A obra, talvez escrita com a intenção de ridicularizar a oposição burguesa e intelectual a Nero, é uma das origens da novela moderna e o primeiro romance realista da literatura universal. Serviu de inspiração ao filme Satíricon, dirigido em 1969 pelo cineasta italiano Federico Fellini.

Vítima de intriga, Petrônio foi condenado ao suicídio, acusado de participar na conspiração do ano 65 contra o imperador. Passou suas últimas horas numa festa, em Cumas. Nessa ocasião, catalogou os vícios de Nero e enviou-lhe a lista antes de cortar os pulsos, no ano 66.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Apuleio

A crise ideológica de Roma no século dos Antoninos, quando o ceticismo cortesão se entrelaçou ao crescente influxo dos cultos orientais, serviu de pano de fundo à elaboração da obra de Apuleio, notável figura da literatura, da retórica e da filosofia platônica de sua época.

Lúcio Apuleio nasceu em Madaura, na Numídia (moderna Argélia), por volta do ano 124. Educado em Cartago e Atenas, viajou pelo Mediterrâneo, interessando-se por ritos de iniciação como os associados ao culto da deusa egípcia Ísis.

Versátil e familiarizado com os autores gregos e latinos, ensinou retórica em Roma antes de regressar à África para casar-se com uma rica viúva, cuja família o acusou de ter recorrido à magia a fim de conquistar seu afeto. Para defender-se de tal acusação escreveu a Apologia (173), obra da qual emanam as informações disponíveis sobre sua vida.

Escreveu ainda diversos poemas e tratados, entre os quais Florida, coletânea de trabalhos de eloqüência, mas a obra que lhe deu fama foi a narrativa em prosa em 11 livros a que chamou Metamorfoses e se tornou conhecida como O asno de ouro. São aí relatadas as aventuras do jovem Lúcio, que é transformado por magia em burro e só recupera a forma humana graças à intervenção de Ísis, a cujo serviço se consagra.

O episódio mais destacado dessa obra-prima de Apuleio -- o único romance da antiguidade a chegar completo aos nossos dias -- é a bela fábula de "Amor e Psiquê", que pode ser interpretada como narração puramente estética ou, então, como alegoria da união mística. O episódio, aliás, destoa do estilo do romance em geral, pois este relaciona cenas grotescas, terrificantes, obscenas e, em parte, deliberadamente absurdas.

O tema de "Amor e Psiquê" foi retomado por muitos escritores, entre os quais, no século XIX, os poetas ingleses William Morris e Robert Bridges. Outras passagens de O asno de ouro reapareceram no Decameron, de Giovanni Bocaccio, no Don Quixote, de Miguel de Cervantes, e no Gil Blas de Alain Le Sage. Apuleio morreu em Cartago, provavelmente após o ano 170.

Fonte:Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

O Intruso

That night the Baron dreamt of many a wo; / And all his warrior-guests, with shade and form / Of witch and demon, and large coffin-worm, / Were long be-nightmared.
Keats

Pobre de quem da infância lembra apenas de seus medos e tristezas. Infeliz daquele que recorda as horas solitárias em salas vastas e sombrias com reposteiros marrons e loucas fileiras de livros arcaicos, ou as vigílias apavoradas nos bosques crepusculares de árvores imensas, grotescas, entulhadas de trepadeiras cuja rama entrelaçada agita-se silenciosa nas alturas longínquas. Essa sina reservaram-me os deuses — a mim, o aturdido, o frustrado, o estéril, o prostrado. E, no entanto, me alegro e me aferro com voracidade a essas memórias fanadas quando meu espírito ameaça por um momento se atirar para o outro.

Não sei onde nasci, exceto que o castelo era muitíssimo velho e medonho, repleto de passagens sombrias e com tetos altos, onde tudo que os olhos conseguiam alcançar era teias de aranha e sombras. As pedras dos corredores em ruínas pareciam estar sempre úmidas demais e um cheiro execrável espalhava-se por tudo como se exalasse dos cadáveres empilhados das gerações passadas.

Estava sempre escuro e eu costumava acender velas e olhar fixamente para elas em busca de consolo, e o sol não brilhava no lado de fora com aquelas árvores terríveis elevando-se para além da mais alta torre acessível. Havia uma torre escura que subia além da copa das árvores para o céu invisível, mas uma parte dela havia ruído e não se podia galgá-la senão escalando as paredes abruptas, pedra por pedra.

Devo ter morado muitos anos neste lugar, mas não posso medir o tempo. Criaturas devem ter cuidado de minhas necessidades, mas não consigo lembrar-me de ninguém além de mim, ou de qualquer coisa viva, além dos ratos, aranhas e morcegos silenciosos. Imagino que o ser que cuidou de mim deve ter sido terrivelmente idoso, pois minha primeira noção de um ser vivo era algo parecido comigo, mas deformado, enrugado e decadente como o castelo.

Para mim, nada havia de bizarro nos ossos e esqueletos que se espalhavam por algumas criptas de pedra no recesso das fundações; em imaginação, eu associava essas coisas à vida cotidiana e as considerava mais naturais que as ilustrações coloridas de seres vivos que encontrava em muitos daqueles livros bolorentos. Nesses livros, aprendi tudo que sei. Nenhum professor me estimulou nem orientou, e não me recordo de ter ouvido alguma voz humana naqueles anos todos — nem sequer a minha própria, pois, apesar de falar em pensamento, jamais tentei falar em voz alta.

Minha aparência era também inimaginável, pois, não havendo espelhos no castelo, eu me considerava, por instinto, parecido com as imagens de jovens que via desenhadas ou pintadas nos livros. Tinha consciência de ser jovem porque minhas recordações eram ínfimas.

No exterior, além do fosso pútrido e debaixo das soturnas, silenciosas árvores, eu muitas vezes me deitava e sonhava durante horas sobre o que lera nos livros e em sonhos me imaginava em meio às multidões alegres no mundo ensolarado além da floresta interminável.

Certa vez tentei escapar da floresta, mas, à medida que fui afastando-me do castelo, a escuridão foi-se adensando e o ar enchendo-se de horrores e voltei numa correria vertiginosa temendo perder-me num labirinto de trevas silenciosas.

E assim, durante crepúsculos intermináveis, eu sonhei e esperei, embora não soubesse pelo quê. Foi então que, na lúgubre solidão, meu anseio por luz tornou-se de tal forma arrebatador, que eu já não conseguia repousar e erguia as mãos em súplica para a única torre negra em ruínas que se erguia até além da floresta para o invisível céu exterior, até que resolvi enfim escalar aquela torre, apesar do risco de despencar; era melhor vislumbrar o céu e morrer do que viver sem jamais ter avistado o dia.

No úmido crepúsculo, eu galguei a escada de pedra gasta e envelhecida até o nível onde ela terminava e dali para a frente me sustive, com grande risco, em pequenos apoios para os pés que conduziam para cima. Pavoroso e terrível era aquele cilindro de rocha morto e sem escada; escuro, arruinado, deserto e sinistro, com morcegos espantados esvoaçando com asas silenciosas.

Mais pavorosa e terrível ainda era a lentidão de meu progresso. Por mais que subisse, a escuridão ao alto não se dissipava e uma nova friagem, como que de um mofo entranhado e venerável, assediava-me. Estremeci ao imaginar por que não avistava a luz e teria olhado para baixo se ousasse. Imaginei aquela escuridão descendo abruptamente sobre mim e tateei em vão com a mão livre procurando uma fresta de janela por onde pudesse espiar para fora e para o alto, tentando avaliar a altura a que chegara.

De repente, depois de um infinito arrastar às escuras por aquele precipício côncavo e de-sesperador, senti minha cabeça locar num objeto sólido e percebi que havia atingido o teto, ou, pelo menos, algum tipo de piso. No escuro, ergui a mão livre e testei o obstáculo, percebendo que era de pedra e inamovível.

Logo em seguida, iniciei um contorno mortal da torre, agarrando-me a toda saliência que o paredão escorregadio me pudesse oferecer, até que a minha mão investigadora sentiu o obstáculo ceder e tentei retomar a subida empurrando a laje ou porta com a cabeça usando as duas mãos na temerária escalada. Acima, não havia nenhuma luz visível e, quando minhas mãos avançaram mais um pouco, percebi que ainda não fora daquela vez o desfecho de minha escalada, pois a laje era o alçapão de uma passagem que conduzia a uma superfície plana de pedra cuja circunferência era maior do que a parte inferior da torre, com certeza o piso de alguma câmara de observação elevada e espaçosa.

Arrastei-me cuidadosamente pela passagem tentando impedir que a pesada laje caísse de novo no lugar, mas falhei nessa última tentativa. Caído exausto sobre o chão de pedra, ouvi as reverberações lúgubres de sua queda, mas achei que, quando fosse necessário, poderia erguê-la de novo.

Acreditando ter chegado a uma altura prodigiosa, muito acima das malditas árvores da floresta, levantei-me do chão com dificuldade e sai tateando à procura de janelas por onde pudesse olhar, pela primeira vez, o céu, a Lua e as estrelas sobre os quais havia lido. Mas em todos os lados a tentativa foi baldada.

Tudo que encontrei foram enormes prateleiras de mármore sustendo caixas oblongas e repulsivas cujo tamanho me inquietou. Mais e mais eu refletia e tentava imaginar que segredos veneráveis poderiam abrigar-se nessa câmara elevada, isolada por tantos séculos do castelo abaixo. Então, de repente, minhas mãos deram com uma passagem bloqueada por um portal de pedra decorado com curiosos entalhes cinzelados.

Experimentando-a, percebi que estava trancada, mas com um esforço supremo superei todos os obstáculos e forcei-a para dentro. Ao fazê-lo, fui tomado pelo mais puro êxtase que já conhecera, pois, brilhando mansamente através de uma grade de ferro trabalhado e um curto lance de degraus de pedra descendente, lá estava a Lua, cheia e radiante, que eu jamais vira, exceto em sonhos e em nebulosas visões que nem sequer ousaria chamar de lembranças.

Imaginando ter chegado o topo do castelo, comecei a subir às pressas os poucos degraus além da porta, mas uma nuvem encobriu de repente a Lua, fazendo-me tropeçar e prosseguir com maior vagar na escuridão. Ainda estava muito escuro quando atingi a grade — que experimentei com cuidado e descobri que estava destrancada, mas que não abri temendo cair da altura espantosa a que havia chegado. E a Lua então ressurgiu.

O mais infernal de todos os choques é aquele causado pelo inesperado abismal e o inacreditável grotesco. Nada do que eu sofrera poderia comparar-se ao horror que agora presenciava, com as aberrações maravilhosas que aquela visão provocava. A visão, em si, era ao mesmo tempo banal e estarrecedora, pois se tratava do seguinte: em vez de uma perspectiva estonteante de copas de árvores vistas de uma altura imponente, estendia-se ao meu redor além da grade nada menos que o terreno sólido, ornamentado e dividido por placas e colunas de mármore e dominado por uma antiga igreja de pedra cujo cone em ruínas reluzia pálido ao luar.

Sem me dar conta de meus atos, abri a grade e saí cambaleando para fora, pelo caminho de cascalho branco que se estendia para longe em duas direções. Minha mente, por atônita e caótica que estivesse, conservava a obstinada avidez pela luz e nem mesmo o prodígio fabuloso que acontecera poderia conter meu ímpeto. Eu não sabia, nem me importava em saber, se a minha experiência era fruto de insânia, sonho ou magia, determinado como estava a fitar o esplendor e a alegria a qualquer custo.

Eu não sabia quem eu era, ou o que era, ou em que consistia tudo aquilo ao meu redor, mas, enquanto avançava aos tropeções, fui tomando consciência de uma recordação latente e alarmante que, de certa forma, cadenciou os meus passos. Passei por baixo de um arco daquela região forrada de lajes e colunas e errei pelo campo aberto, seguindo às vezes pela estrada visível, outras a abandonando e caminhando pelos prados onde ruínas esparsas sugeriam a presença antiga de uma estrada abandonada.

Em certa altura, cruzei a nado um rio caudaloso onde ruínas de alvenaria cobertas de musgo sugeriam uma ponte havia muito desaparecida. Duas horas devem ter transcorrido até eu alcançar o que parecia ser o meu destino, um venerável castelo coberto de hera no meio de um parque arborizado, de maneira curiosa familiar, mas que ainda assim me causou uma intrigante perplexidade. Notei que o fosso estava cheio e que algumas daquelas torres bastante conhecidas estavam em ruínas, e que havia novas alas para confundir o observador. Mas o que observei com especial interesse e satisfação foram as janelas abertas — profusamente iluminadas e deixando escapar os sons da mais alegre das orgias.

Aproximando-me de uma delas, olhei para dentro e vi um grupo de pessoas em trajes bizarros divertindo-se e conversando com animação. Ao que me parecia, eu jamais tinha ouvido uma fala humana e só poderia supor vagamente o que estavam dizendo. Algumas feições me sugeriram recordações muito remotas, outras me eram por completo estranhas.

Saltei então pela janela baixa para dentro do salão resplandecente, saindo assim do meu único momento luminoso de esperança para a mais negra comoção de desespero e percepção. O pesadelo caiu como um raio, pois, mal havia entrado, presenciei uma das mais terrificantes demonstrações que jamais imaginei.

Assim que cruzei o peitoril, o grupo todo caiu num estado de terror súbito e inesperado de tremenda intensidade, que fazia os rostos contraírem-se e provocava gritos apavorados em quase todas as gargantas. A debandada foi geral e, em meio ao clamor e o pânico, muitos perderam os sentidos e foram arrastados pelos enlouquecidos companheiros em fuga. Muitos taparam os olhos com as mãos, atirando-se numa correria cega e desajeitada para escapar, contornando móveis e chocando-se contra as paredes até conseguirem alcançar uma das muitas portas.

Os gritos eram apavorantes e, quando fiquei sozinho e atônito no salão brilhante escutando o apagar de seus ecos, estremeci imaginando o que poderia estar invisível à espreita, ao meu lado. A primeira vista, o salão me pareceu deserto, mas, quando caminhei na direção de uma das recâmaras, pensei ter vislumbrado ali uma presença — uma sugestão de movimento além da passagem em arco dourada que conduzia para um salão parecido com o primeiro.

Aproximando-me do arco, comecei a perceber melhor aquela presença e, então, com o primeiro e último som que jamais proferi — um uivo pavoroso que me causou quase tanta repugnância quanto a coisa medonha que o causara —, enxerguei, com plena e apavorante nitidez, a inconcebível, indescritível e indizível monstruosidade que, com seu mero surgimento, havia transformado um grupo alegre numa horda de fugitivos delirantes.



Não posso sequer sugerir com o que ela parecia-se, pois era uma combinação de tudo que é impuro, repugnante, repudiado, anormal e odioso. Era a sombra espectral de decadência, antiguidade e dissolução, o pútrido, gotejante espectro de uma revelação doentia, o horrível desnudamento daquilo que a terra misericordiosa deveria para sempre ocultar. Deus sabe que aquilo não era deste mundo — ou não era mais deste mundo —, mas, para meu horror, eu percebi em seu perfil carcomido, com os ossos à mostra, uma abominável caricatura da forma humana e, em suas roupas mofadas e em frangalhos, uma qualidade indizível que me arrepiou ainda mais.

Aquilo quase me paralisou, mas não foi o bastante para eu não esboçar uma débil tentativa de fuga, um salto para trás que não conseguiu quebrar o encanto com que o monstro inominável e silencioso me prendia. Meus olhos, enfeitiçados pelos globos oculares vidrados que os fitavam de maneira asquerosa, não queriam fechar-se, embora uma piedosa turvação só me permitisse ver o terrível objeto de maneira indistinta depois do primeiro impacto.

Tentei erguer a mão e tapar os olhos, mas tinha os nervos tão abalados, que o braço não obedeceu à minha vontade. A tentativa, porém, foi quanto bastou para me perturbar o equilíbrio, e precisei dar vários passos cambaleantes para a frente para não cair. Ao fazê-lo, tive uma súbita e dolorosa consciência da proximidade da coisa sepulcral, meio que imaginei ouvir a sua respiração cava e repulsiva. Quase enlouquecido, consegui mesmo assim estender a mão para espantar a fétida aparição que estava tão perto, quando, num segundo cataclísmico de um pesadelo cósmico e um acidente infernal, meus dedos tocaram a mão putrefata do monstro estendida por baixo do arco dourado.

Eu não gritei, mas todos os fantasmas demoníacos que cavalgam o vento noturno uivaram por mim quando, naquele mesmo instante, desabou sobre a minha mente uma única e fugaz avalanche de uma lembrança de aniquilar a alma. Eu percebi naquele instante tudo que havia acontecido; minhas recordações foram além do assustador castelo e das árvores, e reconheci o edifício modificado onde eu estava agora; reconheci, mais terrível de tudo, a ímpia abominação que eu tinha à minha frente enquanto afastava meus dedos imundos dos seus.

Mas, no cosmo, há sofrimento e há bálsamo. E esse bálsamo é nepente. No supremo terror daquele instante, esqueci-me do que me havia horrorizado e o surto de negra recordação desfez-se num pandemônio de imagens reverberantes. Fugi num sonho daquele edifício assombrado e maldito e célere corri, em silêncio, sob o luar.

Retornando ao cemitério de mármore, desci os degraus e descobri que não conseguiria mover o alçapão de pedra, mas isto não me aborreceu, porque eu detestava aquele castelo antigo e aquelas árvores. Agora eu cavalgo com os fantasmas amáveis e zombeteiros ao vento noturno e brinco durante o dia entre as catacumbas de Nephren-Ka no vale oculto e proibido de Hadoth, à margem do Nilo. Sei que aquela luz não é para mim, exceto a da Lua sobre as sepulturas de pedra do Neb, bem como nenhuma alegria, salvo as indescritíveis orgias de Nitokris sob a Grande Pirâmide, mas, em minha nova selvageria e liberdade, eu quase agradeço a amargura da alienação.

Pois, embora tenha-me acalmado, sempre saberei que sou um intruso, um estranho neste século e entre os que ainda são homens. Isto eu soube desde que estendi meus dedos para a abominação no interior da enorme moldura dourada, estendi meus dedos e toquei uma superfície fria e sólida de vidro polido.

Aldous Huxley

Intelectual culto e requintado, Huxley fez muito sucesso, nas décadas de 1930 e 1940, com uma série de romances de técnica em parte experimental, quase sempre comprometidos com a discussão de idéias. Anos mais tarde, adquiriu importância por ter antecipado elementos da contracultura das décadas de 1960 e 1970, como a rejeição do consumismo, as tendências anarquistas, o interesse pelo Oriente e as experiências místico-visionárias.

Aldous Leonard Huxley nasceu em 26 de julho de 1894 em Godalming, Surrey. Descendente de ilustre família, era neto do naturalista Thomas Henry Huxley, famoso defensor do darwinismo, filho do escritor Leonard Huxley e irmão do biólogo Julian Huxley e do fisiologista Andrew Fielding Huxley. Após estudar em Eton e Oxford, passou a dedicar-se à literatura e publicou alguns volumes de poesia, entre os quais Defeat of Youth (1918; Derrota da juventude).

Malgrado a diversidade de sua produção, destacou-se sobretudo por seus romances e ensaios. Sua cultura polivalente permitiu-lhe escrever sobre os assuntos mais variados e sua inquietação levou-o a conhecer países de todas as latitudes e a submeter-se a experiências pioneiras sobre a expansão da consciência, até mesmo pela ingestão de alucinógenos.

Os primeiros de seus muitos romances, como Crome Yellow (1921; Ronda grotesca) e Point Counter Point (1928; Ponto e contraponto), manifestam a rebeldia contra os valores políticos e morais da era vitoriana. Já em Brave New World (1932; Admirável mundo novo), Huxley expressa sua posição crítica em relação ao progresso científico e social, e prevê um futuro sinistro para a humanidade. Do ceticismo sua visão de mundo derivou para o misticismo, atraído pelas filosofias orientais. Dessa fase datam os romances Eyeless in Gaza (1936; Sem olhos em Gaza), Ape and Essence (1949; O macaco e a essência) e Island (1962; A ilha).

Sua produção ensaística gerou ao mesmo tempo curiosos volumes, como The Perennial Philosophy (1946; A filosofia perene) e Heaven and Hell (1956; Céu e inferno). Grande interesse despertaram seus estudos históricos, Grey Eminence (1948; Eminência parda), biografia do padre Joseph, conselheiro de Richelieu, e The Devils of Loudun (1952; Os demônios de Loudun), exposição e análise de antigos casos de freiras atingidas pela possessão demoníaca, bem como The Doors of Perception (1954; As portas da percepção), em que narra suas experiências com a mescalina, droga alucinógena.

Radicado nos Estados Unidos desde 1947, Aldous Huxley exerceu grande influência nos meios californianos onde se articularam movimentos de contestação ao racionalismo ocidental e ao modelo americano de vida. Morreu em Los Angeles, em 22 de novembro de 1963.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Albert Camus

Em seu esforço para encontrar um sentido para a vida humana sem recorrer ao dogmatismo nem a falsas esperanças, Albert Camus foi muitas vezes mal compreendido mas influenciou decisivamente sua geração intelectual e a seguinte.

Albert Camus nasceu em Mondovi, Argélia, em 7 de novembro de 1913. Com a morte do pai na batalha do Marne, durante a primeira guerra mundial, passou por sérias dificuldades econômicas junto com a família. Conseguiu, no entanto, estudar filosofia na Universidade de Argel e exerceu várias profissões até se formar. Tuberculoso, não pôde trabalhar como professor e resolveu abraçar a carreira literária, que iniciou como jornalista e fundador do Théâtre du Travail. As agruras desses anos se refletem em suas primeiras obras, as coletâneas de ensaios L'Envers et l'endroit (1937; O avesso e o direito) e Noces (1938; Bodas).

Depois de romper com o Partido Comunista, após vários anos de militância, Camus mudou-se em 1940 para Paris, que teve que abandonar ante a invasão alemã. Pouco depois regressou à França e aderiu à resistência, como diretor da revista Combat.

Em plena guerra mundial publicou uma série de obras que tornariam célebre seu nome: o romance L'Étranger (1942; O estrangeiro), o ensaio Le Mythe de Sisyphe (1942; O mito de Sísifo) e duas peças de teatro, Le Malentendu (1944; O mal-entendido) e Calígula (1945). Em todas Camus apresentava uma visão desesperançada e niilista da condição humana, que pode ser resumida nas palavras postas na boca do imperador romano Calígula: "Os homens morrem e não são felizes." A clara e perfeita linguagem de Camus era veículo apropriado para a expressão de suas idéias.

Era difícil, no entanto, conciliar a postura solidária e progressista do combatente da resistência com tal negativismo. Por isso, em suas obras posteriores Camus tendeu a elaborar um pensamento em que o niilismo constituísse "um ponto de partida" para uma sociedade mais livre e humana. Exemplo disso foi o romance La Peste (1947), narrativa simbólica da luta de um médico contra uma epidemia em Oran. Por trás dessa trama simples se percebia, no entanto, a sombra do nazismo e da ocupação alemã, bem como um apelo à dignidade humana. Temática muito semelhante aparece na obra L'État de siège (1948; O estado de sítio).

A postura ideológica de Camus aparece com nitidez em L'Homme révolté (1951; O homem revoltado), longo ensaio de caráter metafísico no qual ele analisou a ideologia revolucionária e escreveu palavras reveladoras: "O rebelde rechaça, portanto, a divindade, para compartilhar as lutas e o destino comum." O ensaio, no entanto, não foi bem recebido pelos círculos esquerdistas, que viam nele um pensamento demasiadamente individualista e retórico. Camus, que jamais quis aderir ao existencialismo, rompeu com o líder do movimento, Jean-Paul Sartre, atacando as idéias marxistas deste, que já criticara sutilmente na obra dramática Les Justes (1950; Os justos).

Durante a década de 1950, Camus enfrentou um conflito entre suas idéias progressistas e a explosão da revolução na Argélia, diante da qual, fundamentalmente por razões sentimentais, se colocou do lado da França. Tais contradições internas resultaram em duas obras importantes, o romance La Chute (1956; A queda) e a coletânea de contos -- vários deles situados na Argélia -- L'Exil et le royaume (1957; O exílio e o reino). O mundo que surge em seus contos já não é tão absurdo como o de suas primeiras obras, um inferno caótico e irreal, fruto talvez da sensação de isolamento do autor, que não diminuiria com a conquista do Prêmio Nobel em 1957.

Albert Camus morreu em 4 de janeiro de 1960, num acidente de automóvel perto de Sens, na França. Sua obra, apesar de polêmica e contraditória, constitui uma das grandes realizações da literatura francesa e foi a expressão de um homem que sempre agiu com honestidade em sua busca de justiça.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

A Literatura Fantástica


Tida durante muito tempo como gênero menor, a literatura fantástica produziu, no entanto, obras de interesse universal. Na segunda metade do século XX, ganhou imensa popularidade a vertente fantástica latino-americana conhecida como realismo mágico.

Entendida como qualquer tipo de criação literária que não dê prioridade à representação realista, a literatura fantástica engloba mitos, lendas, contos de fada, contos folclóricos, escritos surrealistas, contos de horror etc. -- e qualquer texto que se situe em territórios diferentes da realidade imediata ao ser humano. Mais propriamente do que gênero literário, a literatura fantástica é uma tendência, observada ao longo de toda a história da literatura.

Sua antecessora, na era clássica, é a sátira menipéia (que tem o nome de seu criador, o filósofo grego Menipo) que, ligada à tradição carnavalesca, rompia todos os condicionamentos de probabilidade ou realismo. São romances desse tipo Metamorfoses, conhecido como O asno de ouro, de Apuleio, e o Satiricon, de Petrônio.

O maravilhoso na literatura

Embora se entenda o fantástico, tradicionalmente, como tudo aquilo que se distancia da imitação convencional do real, é importante distinguir o maravilhoso do fantástico propriamente dito. Os relatos maravilhosos são aqueles que, mesmo situados fora do mundo da realidade, narram acontecimentos ocorridos num passado cronologicamente indeterminado. O narrador é onisciente e apresenta seu relato de tal forma que não há espaço para questionar sua história, coerente em si mesma.

Entre esses relatos se encontram os contos folclóricos e de fadas, que figuram entre as primeiras manifestações literárias não escritas. Uma das compilações mais importantes desse tipo de relato é atribuída aos irmãos Grimm. No livro Kinder und Hasmärchen (1812-1822; Contos das crianças e da casa), recolheram grande número de narrativas da tradição popular alemã, muitas das quais, como as histórias de Chapeuzinho Vermelho e da Gata Borralheira, se tornaram mundialmente famosas.

Dentro do maravilhoso se incluem outras modalidades narrativas de grande difusão, tais como o romance pastoril, iniciado pelo italiano Jacopo Sannazzaro, com Arcadia (1504); o romance bizantino, que começou a ser escrito ainda no mundo helênico; a alegoria ocultista medieval e as histórias de cavalaria, iniciadas com as lendas do rei Artur, os cavaleiros da Távola Redonda e a busca do Santo Graal.

Ao maravilhoso pertencem ainda obras como Gulliver's Travels (1726; As viagens de Gulliver), de Jonathan Swift; Wonderful Wizard of Oz (1900; O mágico de Oz), de Frank Baum; Die unendliche Geschichte (1979; A história sem fim ), de Michael Ende, e The Lord of the Rings (1954-1955; O senhor dos anéis), no qual o autor, J. R. R. Tolkien, ao mesmo tempo em que trata temas como o poder, ambição, guerra e morte numa dimensão muitas vezes épica, concretiza uma das maiores criações mitológicas da literatura de todos os tempos.

Características da literatura fantástica

A narrativa fantástica não cria, como a maravilhosa, mundos novos, completamente dissociados da realidade. Ela confunde elementos do maravilhoso e do real ou mimético. Afirma que é real aquilo que está contando -- e para isso se apóia em todas as convenções da ficção realista -- mas começa a romper esse "suposto real" à medida em que introduz aquilo que é manifestamente irreal.

Arranca o leitor da aparente comodidade e segurança do mundo conhecido e cotidiano para apresentar-lhe um mundo estranho, cuja inverossimilhança está mais próxima do maravilhoso. A toda hora se questiona a natureza daquilo que se vê e se registra como real. As unidades clássicas de tempo, espaço e personagem ficam ameaçadas de dissolução. Os temas estão ligados, normalmente, à invisibilidade, à transformação, ao dualismo e à luta entre o bem e o mal. Isso gera uma grande quantidade de motivos recorrentes, como fantasmas, sombras, vampiros, homens-lobo, duplos, dupla personalidade, reflexos (espelhos), masmorras, monstros, feras, canibais etc.

Sem considerar outros antecedentes de menor importância, pode-se dizer que a literatura fantástica moderna começou no final do século XVIII, com o chamado romance gótico, que introduziu na narrativa agentes sobrenaturais e irracionais de todo tipo. O primeiro romance desse tipo foi The Castle of Otranto (1765; O castelo de Otranto), de Horace Walpole. De feição humorística é The Adventures of Baron Munchhausen (1785; As aventuras do barão de Munchhausen), obra escrita em inglês pelo alemão Rudolph Erich Raspe.

No século XIX, o gênero gótico evoluiu no sentido de abrir espaço para a análise de questões psicológicas e morais de grande transcendência. Frankenstein (1818), de Mary Shelley, mostra como a tentativa de criar um ser humano deu como trágico resultado um monstro.

O dualismo, ou seja, a manifestação de um duplo que representa uma faceta perdida da personalidade, é um dos elementos temáticos fundamentais do romance gótico. Os dois relatos mais conhecidos em que o dualismo se expressa são The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886; O médico e o monstro), de R. L. Stevenson, e The Picture of Dorian Gray (1891; O retrato de Dorian Gray), de Oscar Wilde. Duplos ou sombras aparecem também, de forma recorrente, em obras como Penthesilia (1808), de Heinrich von Kleist; Peter Schlemihl (1814), de Adalbert von Chamisso; e no conto "O sósia", de Dostoievski. Nos Estados Unidos surgiram notáveis escritores do estilo gótico, como Washington Irving, Nathaniel Hawthorne e o célebre Edgar Allan Poe.

Drácula (1897), de Bram Stoker, é uma das obras culminantes da literatura gótica do século XIX. Por meio do vampiro Drácula se realiza, de maneira horrenda, o anseio da imortalidade. Inúmeros autores, além dos citados, incluíram elementos do romance gótico em suas obras: Charles Dickens, Théophile Gautier, Honoré de Balzac, Prosper Mérimée, as irmãs Brontë e muitos outros. Dentro do grupo chamado dos "fantasistas vitorianos" destaca-se Lewis Carroll, autor de Alice's Adventures in Wonderland (1865; Alice no país das maravilhas), em que busca, no insólito, os sentidos que escapam ao senso comum.

Na literatura fantástica do século XX se observa uma tendência a representar situações tão absurdas que não se consegue vislumbrar nenhuma possibilidade de significado. Franz Kafka, autor de obras como Der Prozess (O processo) ou Das Schloss (O castelo), publicadas postumamente na década de 1920, é o autor maior dessa tendência, dentro da qual podem ser incluídos, de certa forma, muitos dos contos fantásticos de Julio Cortázar. H. P. Lovecraft, criador de um pavoroso mundo de monstros, vincula-se à tradição do romance gótico.

Outro ramo do gênero fantástico moderno toma como ponto de partida aquilo que é manifestamente irreal e fabuloso, tendência muito evidente nos contos fantásticos do argentino Jorge Luis Borges, reunidos em Ficciones (1935-1944) e El Aleph (1933-1969); os de seu compatriota Julio Cortázar, e os do peruano Julio Ramón Ribeyro. Vinculados a essa tradição do fantástico sob a forma de fábula estão diversos romances de Bernard Malamud, Kurt Vonnegut, John Bart e outros. No realismo mágico, especificamente latino-americano, misturam-se problemas sociais com acontecimentos fantásticos, como em Cien años de soledad (1967; Cem anos de solidão), do colombiano Gabriel García Márquez, e La casa de los espíritus (1982; A casa dos espíritos), da chilena Isabel Allende.

Entre os autores brasileiros, a literatura fantástica tem como um de seus representantes mais autênticos Machado de Assis, com o conto "A chinela turca"; Simões Lopes Neto, com Lendas do sul (1913) e Contos gauchescos (1926), principalmente com os contos "A salamanca do jarau" e "O negrinho do pastoreio", em que explora mitos folclóricos brasileiros; Mário de Andrade, com Macunaíma (1928); Jorge Amado, com Quincas Berro d'Água (1961); Guimarães Rosa, com "A terceira margem do rio" (1962); e José Cândido de Carvalho, com o romance O coronel e o lobisomem (1964).

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

A Literatura de Horror

Horace Walpole's 1764 novel The Castle of Otranto

A literatura de horror se caracteriza por levar o leitor a aceitar a verossimilhança do inacreditável e a aderir emocionalmente à atmosfera angustiante ou sobrenatural sugerida pelo autor.

Pode-se fixar em 1764 o início da literatura de horror, com a publicação de The Castle of Otranto (O castelo de Otranto), de Horace Walpole. O cenário da obra, um castelo do século XIII, deu nome ao romance gótico, típico da literatura de horror, cujos títulos mais célebres são The Mysteries of Udolpho (1794; Os mistérios de Udolpho), de Ann Radcliffe, e The Monk (1796; O monge), de Matthew Gregory Lewis.

Fenômeno da segunda metade do século XVIII, o romance gótico prolongou sua influência até o século seguinte. Uma de suas reminiscências típicas é The Haunters and the Haunted or The House of the Brain (Os assombradores e os assombrados ou A casa do cérebro), de Edward Bulwer-Lytton.

O tema do monstruoso teve seu período áureo na transição entre os séculos XIX e XX, mas seu nascimento pode ser atribuído ao Frankenstein (1818), de Mary Shelley. O protótipo reviveria quase cem anos mais tarde com o personagem Drácula, de Bram Stoker, que deu início à voga do vampirismo e inspiraria vários filmes de horror no século XX.

Ainda no início do século XIX, autores famosos, entre eles Dickens, Balzac e Walter Scott, foram influenciados pela atmosfera das histórias sobrenaturais e incluíram em suas obras elementos do conto de horror.

O alemão E. T. A. Hoffmann foi o grande precursor do moderno conto de terror. Embora tenha buscado inspiração no romance gótico para algumas de suas narrativas, Hoffmann superou em muito, pelo humor e pelo realismo fantástico, os limites do gênero. Seus fantasmas e demônios ocultavam uma visão peculiar, em que o sobrenatural se confronta com a realidade comum. Hoffmann influenciou escritores como Gérard de Nerval e Baudelaire, na França; Gogol, na Rússia; e Hawthorne e Poe, nos Estados Unidos.

Entre os escritores de língua inglesa, devem ser citados ainda Robert Louis Stevenson, autor de The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886; O médico e o monstro), o irlandês Fitz-James O'Brien e Wilkie Collins, este último um dos precursores do romance policial.

Outros importantes autores no gênero foram Henry James, que escreveu The Turn of the Screw (1898; A volta do parafuso), Ambrose Bierce, Edith Warthon, Vernon Lee, F. Marion Crawford, M. R. James, W. W. Jacobs, Arthur Machen, Algernon Blackwood e H. G. Munro, que adotou o pseudônimo de Saki.

Nos contos do americano H. P. Lovecraft o horror e o fantástico adquirem notável verossimilhança, em sagas cósmicas que fundem elementos míticos com as descobertas da ciência moderna.

Fonte:Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

Franklin Cascaes

Franklin Cascaes nasceu a 16 de outubro de 1908 em Itaguaçu, município de São José (SC). Faleceu a 15 de março de 1983, em Florianópolis. No decorrer de sua vida expressou em forma de arte os estudos que realizou sobre a cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina, seus aspetos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições como se fora um ritual abstrato que atingisse a estrutura vital do mito.

E fê-lo soberbamente, já que da pesca da tainha a cerâmica,dos cantos aos engenhos de farinha e açúcar, aprofundou sobretudo o estudo que trata das lendas através de um desenho fantástico, cujo sentido mítico dimensiona uma criatividade genuína e profunda.

Para Cascaes mito é a possibilidade de primordial, a realidade inteligível que estabelece de modo único, numa pré-figuração do mistério que antecede a revelação. A força criativa de Cascaes encontra-se, ainda, na capacidade de sua imaginação, a ponto de acrescentar elementos atuais às lendas da Ilha de Santa Catarina.

Tinha uma personalidade muito forte e curiosa e isto pode ser percebido no seguinte agradecimento: "aos que me contaram estórias e histórias; aos que me acolheram com o valor cultural do calor humano; aos que me hostilizaram, a todos enfim o meu obrigado".

Retratos do imaginário popular

Cascaes retratou por meio da escrita, desenho, escultura e artesanato a Ilha do Desterro, com uma percepção apaixonada e sensível, capaz de captar, absorver e interpretar o que estava diante dos olhos e o que lhe chegava aos ouvidos. A vida do folclorista se confunde com a própria cultura das comunidades litorâneas catarinenses.

Desde criança circulava nos engenhos de farinha, ouvia histórias dos pescadores e confeccionava utilitários, como balaios e louças de barro. Foi descoberto pelo professor Cid Rocha Amaral, diretor da Escola de Aprendizes e Artífices de SC, aos 21 anos, esculpindo na praia de Itaguaçu. Os primeiros registros artísticos de Cascaes são de 1946, quando tinha 38 anos.

O saber fazer, procissões, pesca , lavoura, causos, folguedo, cantorias noturnas, religiosidade, brincadeiras, lendas, literatura oral, enfim, todo o fabulário popular da ilha fez parte do seu dia-a-dia e tornou-se objeto de pesquisa e estudo para o artista. Seus cadernos de anotação eram diários de campo, onde coletava desde receitas até crenças e rezas populares, subvertendo os modelos acadêmicos de pesquisa.

Diferentes aspectos da vida cotidiana do imigrante e seus descendentes, suas formas de organização social, subsistência, natureza e imaginário foram registrados. Cascaes queria divulgar a cultura açoriana para as próximas gerações e principalmente, para seus próprios protagonistas, chamados de "colonos anfíbios", por lidar com terra e mar.

O calendário cultural da cidade e o caráter religioso das manifestações populares criava um universo de sincretismo onde sagrado e profano conviviam. Tanto as festas de padroeiros quanto as rezas bravas pra afastar bruxas interessavam o folclorista. As histórias dos seres fantásticos presentes no folclore catarinense, como bruxas, lobisomem, vampiros e assombração, resultaram no realismo fantástico ilhéu. Logo, Florianópolis passou a ser conhecida como ilha de Cascaes, da magia ou das bruxas.

"Seu Francolino", como era carinhosamente chamado, passava temporadas imerso em comunidades de pescadores e pequenos agricultores ouvindo estórias, com um o interesse quase antropológico em desvendar a identidade daquela cultura. Depois de muitas anotações e desenhos em nanquim, organizava uma exposição com o que havia produzido sobre o cotidiano da comunidade, devolvendo para aquele espaço o que foi com ele compartilhado.

— Franklin Cascaes é um fenômeno , até hoje imcompreendido. Ele registrou o folclore vivaz e a alma da nossa gente. Tinha uma fala muito intensa com os trabalhadores e conhecia o calendário cultural das comunidades, onde tudo era feito com muita fé e alegria, cantorias e comilança. Foi criado nesse meio, era também um portador dessa cultura — comenta Gelci José Coelho, o Peninha, ex-diretor do Museu Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina(Ufsc) e maior pesquisador da vida e obra do artista.

Personagens do cenário insular, do manezinho às figuras políticas, foram moldados em argila. Pequenas esculturas de bruxas, reproduziam as descrições dos antigos moradores do interior. Essas histórias, causos e conhecimentos, que eram repassados de boca à boca, transformavam-se em arte.

O olhar atento de Franklin Cascaes teve uma importância política fundamental. O artista dedicou toda a vida para registrar as lendas, histórias e costumes, pressentindo angustiado a perda dos traços culturais das comunidades litorâneas, com os ventos da modernidade.

Um ambientalista precoce, na contramão da história

Quando ninguém falava de ecologia, Franklin Cascaes já tinha um discurso crítico, alertando para as consequências da modernização.

A partir de 1950, época em que a sociedade florianopolitana almejava a modernidade do Rio de Janeiro e São Paulo, Cascaes agiu na contramão da história. Além de resgatar as tradições seculares, estava atento às questões ambientais, que começavam a ser suplantadas com o "desmonte" da cidade.

— Enquanto as elites locais se deslumbravam com as mudanças que estavam chegando porque eram sinônimos de progresso, Cascaes as pensava de modo crítico, antecipando uma leitura de cunho ecológico, pois observava o impacto da especulação imobiliária não apenas na vida cultural local, mas também no meio ambiente— comenta a professora Aglair Maria Bernardo, na palestra proferida no Museu do Mar em comemoração ao centenário do artista.

Em um dos seu manuscritos ele afirma: "O progresso, senhor mui poderoso e soberano terráqueo, mandará tudo destruir sem técnica, dó, nem piedade, como já o fizeram os homens lá das outras bandas da Terra, das Oropas. Infelizmente não fui mau profeta como teria desejado sê-lo".

Cascaes denunciava as agressões ao meio ambiente em suas poesias, esculturas, desenhos e manuscritos, na ânsia pela preservação do patrimônio histórico e natural da cidade. Foi um visionário, por isso seu discurso permanece tão atual.

— A obra de Cascaes é uma referência fundamental para todos que reconhecem a singularidade do nosso lugar. Não é possível fazer uma ponte com o local sem beber na fonte do Franklin, o maior pesquisador da cultura popular do litoral de Santa Catarina — afirmou a produtora cultural e jornalista Bebel Orofino, que preside a Associação dos Amigos do Museu Universitário.

Qualquer leitura sobre as comunidades litorânea passam necessariamente pela produção de Cascaes, que cantou a sua aldeia e foi universal, fundindo o passado da cultura ilhoa com reflexões sobre o presente.